Pães, legumes, frutas, hortaliças e carnes: no âmago da boa dieta
Feitas as considerações acerca do melhor ar, dos
exercícios físicos, dos banhos e até das relações sexuais, chegamos ao que
parece ser o núcleo dessa fonte medieval: a boa dieta. Conforme dissemos, a
alimentação tinha um importante papel na manutenção da compleição física (ou temperamento).
O equilíbrio entre os humores e, portanto, entre os alimentos consumidos, era
essencial. Arnau de Vilanova, nesse sentido, reflete em seu tratado os anseios
pela moderação apregoados desde a Antiguidade Clássica com os quais se rompeu,
abruptamente, quando das invasões bárbaras do início do Medievo. A gulodice,
muito comum entre os reis medievais, era um comportamento tipicamente pagão
com o qual se preocupava a Igreja. E também os médicos.
As
recomendações de Vilanova sobre a dieta são bem simples: nos onze capítulos em
que é tratada, a abordagem se resume a indicar os alimentos mais adequados para
se alcançar o temperamento do corpo, além de alguns comentários sobre suas
propriedades e a melhor maneira de consumi-los.
O primeiro
grupo alimentar a ser apresentado é o dos que nutrem o organismo (VIII).
Chamá-los-íamos, hoje, de carboidratos. Deixaremos a análise desse
capítulo, contudo, para outra oportunidade. O tratamento do segundo, o dos
legumes (IX), é iniciado por uma frase algo controversa:
“Legums no són covinentz a corses
atempratz dementre los corses són sans”.
“Legumes não são convenientes a corpos temperados enquanto são sadios”.
Parece-nos,
sem dúvida, uma curiosa recomendação. Entretanto, somos logo providos pelos
esclarecimentos de Miquel Batllori (1909-2003), que atenta para o fato de que
as leguminosas eram prejudiciais à compleição de Jaime II, com exceção dos
feijões e dos grãos-de-bico (IX.1, IX.2 e IX.3). Passamos, em seguida, ao mais
extenso capítulo das Regras, o décimo, que aborda as frutas e a melhor
forma de ingeri-las.
Em uma
exaustiva demonstração de conhecimento sobre elas, Arnau elenca 45 tópicos para
descrever os benefícios (e danos) das frutas, além dos elementos mais caros à
saúde presentes nas comumente consumidas pelo rei. Pêssegos, damascos, melões,
melancias, pinhões, avelãs, uvas, peras, castanhas, tâmaras. Cozidas, secas,
frescas, confeitadas. Elas também deveriam ser consumidas de acordo com a
estação:
“Per tal, donques, con en l’estiu la sanc per calor del àer és
enflamada, e en estiu e en autumpne per la sequetat del àer, qui és aguda,
convén-se en los ditz temps usar fruytes fredes e humides a atemprar la sanch.”
“Aytambén, per ço cor per la calor del
estiu los membres del cors són rarificatz e esclareïtz, e pus tost la calor
natural e∙ls espiritz ixen dels membres, lavors covén usar fruytes
atempradament estrenyén los pors de la carn, axí con són fruytes ∙I∙ poc
àrrees. Aytanbén, en los ditz temps, és bon usar fruytes agres, a trencar la
agudea de les còleres.”
“Sequetat, encara, del temps, la qual
moltes veguades constipa e restreny lo ventre, requer que sovín en estiu e en
autumpne ús hom les dites fruytes.”
“Por isso, como no verão o sangue se inflama graças
ao calor do ar, e no verão e no outono são muito secos, convém que sejam
consumidas frutas frias e úmidas para temperar o sangue.”
“Do mesmo modo, como no calor do verão os membros
dos corpos emagrecem e empalidecem, e o calor natural e os espíritos mais
rapidamente saem deles, convém consumir frutas moderadamente para que os poros
da carne sejam obstruídos, como frutas um pouco constringentes. Também nesses
períodos é bom consumir frutas ácidas para quebrar a agudez das cóleras.”
“A secura do tempo, que muitas vezes constipa e
restringe o ventre, requer que, constantemente, no verão e no outono, tais
frutas sejam consumidas” (X.2).
Ameixas não devem ser comidas com cerejas (X.7),
nem figos com uvas (X.8). Pêssegos devem ser consumidos por aqueles que têm o
fígado quente e seco (ou seja, por coléricos), figos são bons para
homens jovens por sua acidez (X.15), pepinos e melões são bons antes do jantar
(para atenuar o ardor do sangue) (X.19), frutas adstringentes nunca devem ser
ingeridas cruas (X.27), peras são mais aconselháveis no verão e no outono (por
seu sumo) (X.31) e castanhas e tâmaras, por serem doces, não serem sumosas e
terem alguma adstringência, são melhores no inverno e na primavera (X.32).
Essa imensidão frutífera era parte
fundamental da farta, porém saudável, dieta do soberano de Aragão. Um aspecto
interessante das recomendações de Vilanova era a preocupação se determinados
alimentos e sobretudo frutas, causavam ou não prisão de ventre. É possível que
isso se deva às diagnosticadas hemorroidas do rei, visto que um intestino solto
é não só prejudicial, mas extremamente doloroso para quem sofre de tal doença!
A obra trata ainda das hortaliças, raízes (cebola,
couve, rabanete, cenoura e chirívia), carnes, derivados do leite, peixes
(liguados, esturjões, baleias, atuns), condimentos (mostarda, rúcula, mel,
açúcar, pólvora [!], salsa, sarmento), regras para se beber e, por fim,
conselhos para mitigar as hemorroidas.
Por isso, desculpamo-nos com nossos leitores e
ouvintes, já que a exiguidade do tempo dessa palestra, a extensão do tema e a
riqueza temática da obra não permitem que façamos uma abordagem mais
aprofundada de toda a fonte. Queremos destacar, contudo, a riqueza
gastronômica das mesas medievais. Um tratado como o de Arnau de Vilanova
evidencia que, ao contrário do que apregoam muitos que desconhecem esse
período, comia-se muito bem na Idade Média.
III de
Foix-Bearne, Phoebus (1331-1391). Paris, BNF, ms. francês 616, folio 67.A
abundância da mesa na Idade Média. Livre de la chasse (Livro da caça),
início do séc. XV, de Gastão
As pesquisas mais recentes revelam que esse
panorama, devidamente nuançado, é claro, podia ser observado da base ao topo da
sociedade. Os camponeses, muito próximos daquilo que produziam nos campos,
tinham nos pães, nas frutas, hortaliças e peixes o âmago de sua dieta. As
cortes reais da Europa ocidental, à medida que avançavam em seu processo
civilizador, substituíram, paulatinamente, as gordas carnes de caça a
que estavam habituadas por esses alimentos mais leves. A “desbarbarização”
desses entourages nobiliárquicos, portanto, foi também manifesta em seus
hábitos alimentares: a diversificação dos alimentos e o refinamento dos pratos
consumidos aparecem na documentação como fatos incontestáveis. Uma sociedade
que, definitivamente, alimentava-se melhor que nos séculos passados, embora a
busca pelo requinte já anunciasse na própria gastronomia sinais de uma clivagem
social entre a nobreza e as camadas mais modestas.
https://www.ricardocosta.com
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