Iluminura
com médico instruindo seu aluno a examinar a urina.
Livro V do De antidotario (f. 306r). In: Medieval Illuminated Manuscripts.
O terceiro capítulo indica como o
indivíduo deve proteger-se da peste. Em primeiro lugar, como ela é um castigo
de Deus, deve-se confessar e fazer penitência, atitudes melhores e mais
eficientes que as mezinhas – remédios caseiros, ungüentos feitos à
base de misturas de ervas. Aqui o texto se abre para a modernidade, pois o
estabelecimento da confissão por parte da Igreja foi o primeiro motor
propulsor da individualidade moderna (DELUMEAU, 1991). Lado a lado com a
confissão e o arrependimento dos pecados, o texto sugere que se mude de casa –
daí a conhecida expressão “mudar de ares”.
Buscar ares novos, não infectados e, mais importante de
tudo, evitar o coito e toda a luxúria (fol. a5, linhas 16-17). Pecado
ignonimioso a Deus, fede como outras coisas que devem ser evitadas: as
estrebarias, os corpos mortos e podres, as casas com águas sujas de esgoto.
Prescritivo, o texto sugere que regularmente se acendam
fogos nas lareiras, com fumos de boas ervas. Estas podem ser compradas nos
boticários (apotecayros; boticairos; boticayros): ervas de losna,
hissopo, arruda e artemísia (artamija), combinadas com madeira de
aloés nas chamas da casa (o aloés é uma planta medicinal e resinosa). O texto
ainda afirma que, embora dêem resultado, esses produtos são muito caros! (fol.
a5v, linhas 17-25)
Essa característica herbária da medicina medieval
salta aos olhos na passagem seguinte: “pela manhã, logo após se levantar, a
pessoa deve comer “[uma folha de] arruda lavada em água limpa e espargida com
sal e uma ou duas nozes-moscadas bem limpas. Caso não tenha isso, [que] então
coma pão ou uma sopa molhada em vinagre, e que isso seja [feito] principalmente
em tempo de nevoeiro e chuvoso” (fol. a6, linhas 15-18). Como todos os tratados
médicos medievais, o Regimento nos faz apreciar virtudes ignoradas ao
nosso redor: plantas, animais, ervas, madeiras.
Os cuidados com a higiene são destacados em seguida. A casa
deve ser regularmente lavada – uma influência da cultura médica muçulmana –
especialmente no alto verão, com “vinagre rosado e folhas de vinhas. E também é
muito bom amiúde lavar as mãos com água e vinagre e limpar o rosto e depois
cheirar as mãos, como é bom, tanto no inverno quanto no verão, cheirar coisas
azedas (fol. a6, linhas 23ss).
Observe-se que o vinagre é um tipo de desinfetante, especialmente
de bactérias pseudomonas (Pseudomonas aeruginosa). O odor do azedo é
bom para a saúde porque desinfeta (não há a palavra ali, mas é esse o sentido).
Viajado, o autor do Regimento ainda explica que esteve em Montpellier
(Monpilher) – cidade universitária medieval que possuía um dos cursos
de medicina mais conceituados de então – curando enfermos de casa em casa por
causa de sua pobreza (precisava ganhar algum dinheiro),
“...e então levava comigo uma esponja ou pão ensopado em
vinagre, e sempre o punha nos narizes e na boca, porque as coisas azedas e tais
cheiros opilam e cerram os poros, os meatos e os caminhos dos humores, e não
consentem que entrem as coisas peçonhentas. E assim [eu] escapei de tal
pestilência que meus companheiros não podiam crer que eu pudesse viver e
escapar. Eu certamente provei todos esses remédios” (fol. a6v, linhas 6-14)
MS. Ashmole 1462.
Miscelânea de textos médicos e erbário em latim. Inglaterra, final do
século XII
(fols. 15v-16r).
Mais duas páginas do Manuscrito Ashmole 1462. Na iluminura da página à
esquerda (15v), uma imensa verminatia. A seguir, em um brilhante fundo
azul, um homem segura uma erva e perfura uma serpente com sua espada
(possivelmente indicando que o tratamento com aquela erva cura o veneno da
serpente). Na página à direita (16r), um cão perverso com uma cabeça azul vai
embora da figura de um homem doente (semi-despido) após o ter mordido. O homem
está sendo tratado por um médico (repare que tanto nessa iluminura quanto na da
imagem 1 os médicos estão de azul). No alto da cena do homem
mordido há uma galinha, suspensa no ar. Ela é um augúrio: se seu apetite for
bom, o homem se recuperará, caso contrário, poderá morrer. Por fim, na extrema
direita da página 16r, uma bela simphoniaca. Em ambos os casos
retratados pelas iluminuras dessas páginas, portanto, o livro indica uma erva
específica para o tratamento.
https://www.ricardocosta.com/artigo/corpo-alma-vida-morte-na-medicina-iberica-medieval-o-regimento-proveitoso-contra-pestilencia
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