quinta-feira, 9 de junho de 2022

Proteção contra a peste negra

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Iluminura com médico instruindo seu aluno a examinar a urina.
Livro V do De antidotario (f. 306r). In:
Medieval Illuminated Manuscripts.


O terceiro capítulo indica como o indivíduo deve proteger-se da peste. Em primeiro lugar, como ela é um castigo de Deus, deve-se confessar e fazer penitência, atitudes melhores e mais eficientes que as mezinhas – remédios caseiros, ungüentos feitos à base de misturas de ervas. Aqui o texto se abre para a modernidade, pois o estabelecimento da confissão por parte da Igreja foi o primeiro motor propulsor da individualidade moderna (DELUMEAU, 1991). Lado a lado com a confissão e o arrependimento dos pecados, o texto sugere que se mude de casa – daí a conhecida expressão “mudar de ares”.

Buscar ares novos, não infectados e, mais importante de tudo, evitar o coito e toda a luxúria (fol. a5, linhas 16-17). Pecado ignonimioso a Deus, fede como outras coisas que devem ser evitadas: as estrebarias, os corpos mortos e podres, as casas com águas sujas de esgoto.

Prescritivo, o texto sugere que regularmente se acendam fogos nas lareiras, com fumos de boas ervas. Estas podem ser compradas nos boticários (apotecayros; boticairos; boticayros): ervas de losna, hissopo, arruda e artemísia (artamija), combinadas com madeira de aloés nas chamas da casa (o aloés é uma planta medicinal e resinosa). O texto ainda afirma que, embora dêem resultado, esses produtos são muito caros! (fol. a5v, linhas 17-25)

Essa característica herbária da medicina medieval salta aos olhos na passagem seguinte: “pela manhã, logo após se levantar, a pessoa deve comer “[uma folha de] arruda lavada em água limpa e espargida com sal e uma ou duas nozes-moscadas bem limpas. Caso não tenha isso, [que] então coma pão ou uma sopa molhada em vinagre, e que isso seja [feito] principalmente em tempo de nevoeiro e chuvoso” (fol. a6, linhas 15-18). Como todos os tratados médicos medievais, o Regimento nos faz apreciar virtudes ignoradas ao nosso redor: plantas, animais, ervas, madeiras.

Os cuidados com a higiene são destacados em seguida. A casa deve ser regularmente lavada – uma influência da cultura médica muçulmana – especialmente no alto verão, com “vinagre rosado e folhas de vinhas. E também é muito bom amiúde lavar as mãos com água e vinagre e limpar o rosto e depois cheirar as mãos, como é bom, tanto no inverno quanto no verão, cheirar coisas azedas (fol. a6, linhas 23ss).

Observe-se que o vinagre é um tipo de desinfetante, especialmente de bactérias pseudomonas (Pseudomonas aeruginosa). O odor do azedo é bom para a saúde porque desinfeta (não há a palavra ali, mas é esse o sentido). Viajado, o autor do Regimento ainda explica que esteve em Montpellier (Monpilher) – cidade universitária medieval que possuía um dos cursos de medicina mais conceituados de então – curando enfermos de casa em casa por causa de sua pobreza (precisava ganhar algum dinheiro),

“...e então levava comigo uma esponja ou pão ensopado em vinagre, e sempre o punha nos narizes e na boca, porque as coisas azedas e tais cheiros opilam e cerram os poros, os meatos e os caminhos dos humores, e não consentem que entrem as coisas peçonhentas. E assim [eu] escapei de tal pestilência que meus companheiros não podiam crer que eu pudesse viver e escapar. Eu certamente provei todos esses remédios” (fol. a6v, linhas 6-14)


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MS. Ashmole 1462. Miscelânea de textos médicos e erbário em latim. Inglaterra, final do século XII
(fols. 15v-16r).



Mais duas páginas do Manuscrito Ashmole 1462. Na iluminura da página à esquerda (15v), uma imensa verminatia. A seguir, em um brilhante fundo azul, um homem segura uma erva e perfura uma serpente com sua espada (possivelmente indicando que o tratamento com aquela erva cura o veneno da serpente). Na página à direita (16r), um cão perverso com uma cabeça azul vai embora da figura de um homem doente (semi-despido) após o ter mordido. O homem está sendo tratado por um médico (repare que tanto nessa iluminura quanto na da imagem 1 os médicos estão de azul). No alto da cena do homem mordido há uma galinha, suspensa no ar. Ela é um augúrio: se seu apetite for bom, o homem se recuperará, caso contrário, poderá morrer. Por fim, na extrema direita da página 16r, uma bela simphoniaca. Em ambos os casos retratados pelas iluminuras dessas páginas, portanto, o livro indica uma erva específica para o tratamento.

https://www.ricardocosta.com/artigo/corpo-alma-vida-morte-na-medicina-iberica-medieval-o-regimento-proveitoso-contra-pestilencia

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